setembro 29, 2016

Port de bras

A bailarina entra em cena inúmeras vezes e, em todas elas, se apodera da atenção do público que esquece suas mazelas enquanto se perde na abstração que resvala delicadamente pelo linóleo, equilibrada nas pontas dos pés.
Sua vida é estar pronta para acalmar os corações alheios com ternura, roubando suas dores para si e concentrando-as nos músculos e nos pés que (e a plateia nem desconfia) se sustentam em alguns centímetros de gesso duro.
Ela é aquilo de intangível, meio fada, meio anjo, que vai alimentar todo um teatro de paixão, até que o último expectador se levante levando para a casa a doçura que, executada com amor incondicional, mascarou um tanto de martírio durante três atos.
Todos os dias.
E em todos eles, um passo mais próximo da perfeição.
Mas toda bailarina um dia tem de pendurar as sapatilhas. O corpo não suporta dançar para sempre.
É preciso descansar aquilo que o público não pode ver. É preciso dar paz à carne, aos ossos, à pele calejada. Desmanchar o sorriso eterno. Ser humana, finalmente.
Ainda que ninguém perceba, seus braços doem exaustivamente durante o adagio final e todos os seus movimentos carregam um tanto mais de sacrifício.
Na última coreografia, enquanto a casa se distrai, ela prende a respiração por mais alguns segundos e encerra a fantasia com o sorriso elegante e os gestos delicados com os quais conduziu toda a encenação: reverence.
Flores.
Cai o pano. Agora pode respirar aliviada.
Fim do espetáculo.

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